domingo, 5 de maio de 2019

Um herege público, notório e pertinaz continua sendo Papa?


Um herege público, notório e pertinaz continua sendo Papa?

O herege é todo aquele que nega, ou se recusa a aderir, de alguma forma, aos princípios, ensinamentos, normas e costumes de determinada religião.

Nenhuma religião séria, e digna desta classificação, deixa o herege impune ou sem sofrer nenhuma forma de sanção, como se sua discordância dos preceitos e costumes da religião não constituísse nada de sério, grave ou nenhuma ofensa à verdade que a religião acredita e sustenta.

As sociedades intermediárias, que se encontram abaixo do Estado laico e subordinadas ao direito por ele positivado, contudo tem seus próprios estatutos, normas e costumes. E o fato de não poderem exercer sobre seus membros a coercibilidade que o Estado de fato exerce, ainda assim é evidente que tais sociedades (escolas, associações religiosas, igrejas, clubes, sociedades com as mais diversas finalidades específicas etc) não deixam de exercer sobre seus membros e associados diversas formas de coação/sanção contra aqueles julgados violadores de seus estatutos internos.

Em se tratando de religiões, quem dita as normas e os costumes são os seres superiores aos adeptos do sistema - geralmente divindades - às quais se atribuem poderes e domínios sobre o ambiente natural, inclusive sobre o homem e seu grupamento social.

O homem verdadeiramente religioso acredita que seres superiores a si próprio e ao seu grupo social exercem domínios e fazem coisas que aos homens são impossíveis. Ele reconhece e respeita este ordenamento superior com o qual se relaciona e sobre o qual não se vê capaz de vencer e suplantar a superioridade e o domínio. Por isso, não há motivo para contrariar os princípios da religião, e mais do que isto, não seria ato de coragem, nem de prudência e nem de retidão buscar ignorar ou desobedecer as normas que teriam sido impostas por uma divindade mais inteligente e mais livre que o homem e seu grupo social. Pois, somente um ser inteligente seria capaz de fazer leis, ao discernir as inúmeras relações de causa e efeito, identificando as causas de um determinado efeito e os efeitos provenientes de determinada causa. E somente um ser livre poderia fazer leis, ao decidir o fim a se alcançar, bem como decidir os meios para consegui-lo e ter a capacidade de se realizar satisfatoriamente. O que não fosse resultado da inteligência e liberdade do homem poderia ser resultante de uma inteligência e liberdade superiores às do homem.

Toda religião cobra de seus membros o pleno cumprimento de seus preceitos; sendo o descumprimento prontamente punido. Na antiguidade e em todas as épocas, inclusive atualmente, há sistemas religiosos que impõem seus preceitos até mesmo aos que não são adeptos do sistema, e inclusive violando o direito à vida e outros direitos fundamentais da pessoa.

Devido à maior inteligência e liberdade dos seres superiores ao homem, ou das divindades que estabelecem as normas e exercem o controle do ambiente natural, a adesão e fidelidade dos homens às normas que lhes são dirigidas constituem, inclusive, um meio de auto-defesa do grupamento social contra formas de ira e castigos divinos. Se as normas religiosas não forem fidedignamente observadas, algo de ruim costuma ser esperado.

Como religião antiga e revelada, a punição é aspecto essencial do sistema religioso judaico-cristão, chegando até mesmo a penas eternas em estado de sofrimento (inferno).

A Igreja avoca o direito de punir seus fiéis infratores:

Cân. 1311 – A Igreja tem direito originário e próprio de punir com sanções penais os fiéis delinquentes.” (CDC/1983)

O Código de Direito Canônico (CDC) da Igreja Católica define a heresia:

Cân. 751 Diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o batismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos.” (CDC/1983, grifo nosso)

O cânon 1364, § 1, normatiza que o herege incorre em excomunhão latae sententiae [excomunhão automática]; isto é, pelo próprio fato de se incorrer em heresia, o fiel católico é excomungado, excluído da comunhão da Igreja Católica; não necessitando para isso de um processo jurídico nem de uma sentença ou dispositivo específico declaratório da pena de excomunhão:

Cân. 1364 - § 1. Sem prejuízo do cân. 194, § 1, nº 2, o apóstata da fé, o herege e o cismático incorrem em excomunhão latae sententiae; o clérigo pode ainda ser punido com as penas referidas no cân. 1336, § 1, ns. 1, 2 e 3.

§ 2. Se o exigir a contumácia prolongada ou a gravidade do escândalo, podem acrescentar-se outras penas, sem excetuar a demissão do estado clerical.” (CDC/1983, grifo nosso)

NOTA: O seu equivalente no Código de Direito Canônico (CDC) de 1917 é o cânon 2314, § 1: “Todos os apóstatas da fé cristã e todos e cada um dos hereges ou cismáticos: 1º Incorrem ipso facto (pelo próprio fato) em excomunhão; 2º Se depois de admoestados não se emendam, devem ser privados de todo benefício, dignidade, pensão, ofício ou outro cargo que tiverem na Igreja, que sejam declarados infâmes, e aos clérigos, após a admoestação repetida, que sejam depostos, 3º Se houverem dado o seu nome a uma seita não católica ou tiverem aderido a ela publicamente, são ipso facto infâmes e, tendo em conta a prescrição do cânon 188, 4, que os clérigos, depois de uma advertência ineficaz, devem ser degradados.” (CDC/1917, cân. 2314, § 1, revogado; cfr. Paulo IV, Bula “Cum ex apostolatus officio”, 15 fev. 1559, §§ 2, 3, 6: SANTANA, R. As 15 Fontes da Bula Cum ex Apostolatus no Código de Direito Canônico de 1917. 20 mar. 2013. Disponível em: <http://doctorisangelici.blogspot.com/2013/03/as-15-fontes-da-bula-cum-ex-apostolatus.html>. Acesso em: 30 abr. 2019).

Conforme se vê, não é feita exceção de pessoas. Os punidos podem ser leigos, subdiáconos, diáconos, presbíteros [Padres], Bispos e Papas [Bispo de Roma] que, se hereges, são excomungados automaticamente. Quanto mais pública e notória for a heresia, e quanto maior o tempo em que nela se permanecer sem se retratar - também pública e notoriamente - caracterizando com tal inércia a pertinácia [ou contumácia], tanto mais o indivíduo atentará contra a Fé e atrairá para si a punição na forma de excomunhão. E tudo isto de forma automática, pelo simples cometimento do ato, sem necessidade de julgamento por uma autoridade judicial.

Em se tratando de clérigos, podem-se somar à excomunhão latae sententiae, o exílio em local pré-estabelecido, a privação de poder, ofício, cargo, direito, privilégio, graça, título etc (cân. 1336, § 1, ns. 1, 2, 3). Se a contumácia for prolongada, ou devido à gravidade da heresia, ainda pode ser aplicada a demissão do estado clerical (cân. 1364, § 2). E ainda pode ser aplicada a remoção do ofício (cân. 194, § 1, nº 2).

A tradicional Doutrina da Igreja confirma que o herege, o apóstata e o cismático incorrem em excomunhão latae sententiae, retirando-se da fé e do corpo da Igreja:

“Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perdem de todo a vida sobrenatural os que pelo pecado perderam a caridade e a graça santificante e por isso se tornaram incapazes de mérito sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e alumiados pela luz celeste, são divinamente estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas.” (Pio XII, Encíclica Mystici Corporis, 29 jun. 1943, n. 22, grifo nosso)

Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas. "Todos nós, diz o Apóstolo, fomos batizados num só Espírito para formar um só Corpo, judeus ou gentios, escravos ou livres" (1 Cor 12, 13). Portanto como na verdadeira sociedade dos fiéis há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, um só batismo, assim não pode haver senão uma só fé (cf. Ef 4, 5), e por isso quem se recusa a ouvir a Igreja, manda o Senhor que seja tido por gentio e publicano (cf. Mt 18, 17). Por conseguinte os que estão entre si divididos por motivos de fé ou pelo governo, não podem viver neste corpo único nem do seu único Espírito divino.” (Pio XII, Encíclica Mystici Corporis, 29 jun. 1943, n. 21, grifo nosso)

E já São Paulo (Apóstolo) lança o anátema absoluto sobre todos aqueles que pregarem uma doutrina ou ensinamentos contrários à Revelação transmitida pelos Apóstolos, e isto sem fazer distinção de pessoas:

“Estou admirado de que tão depressa passeis daquele que vos chamou à graça de Cristo para um evangelho diferente. De fato, não há dois evangelhos: há apenas pessoas que semeiam a confusão entre vós e querem perturbar o Evangelho de Cristo. Mas, ainda que alguém – nós ou um anjo baixado do céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado! É, porventura, o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Por acaso tenho interesse em agradar aos homens? Se quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo.” (Gl 1, 6-10)

De acordo com testemunhos de Padres antigos, já bem cedo havia estridente separação entre os hereges e a Igreja Católica:

“Se algum dia peregrinares pelas cidades, não indagues simplesmente onde está a Casa do Senhor porque também as seitas (...) e heresias querem dar o título de ‘Casas do Senhor’ às suas espeluncas. Nem perguntes simplesmente onde está a Igreja, mas onde está a Igreja Católica; este é o título próprio desta Santa Mãe de todos nós, que também é a esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Cirilo de Jerusalém (ano 386), Leituras Catequéticas 18, 26: NABETO, C. M. A Fé Cristã Primitiva. 2 ed. São Paulo – SP: Clube de Autores, 2012, n. 1914)

“Católica, universal significa segundo a totalidade, não como os grupinhos de heréticos limitados a certas regiões, mas difundida por todo o orbe da terra” (Isidoro de Sevilha (ano 636), Etimologias 8, 1, 1: NABETO, C. M. A Fé Cristã Primitiva. 2 ed. São Paulo – SP: Clube de Autores, 2012, n. 1931)

E finalmente o cânon 1331 lista as proibições do excomungado/herege:

Cân. 1331 - § 1. O excomungado está proibido de:

1.º ter qualquer participação ministerial na celebração do Sacrifício Eucarístico ou em quaisquer outras cerimônias de culto;


2.º celebrar sacramentos ou sacramentais e receber sacramentos;


3.º desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo.


§ 2. Se a excomunhão tiver sido aplicada ou declarada, o réu:


1.º se intentar agir contra a prescrição do § 1, n.º 1, deve ser repelido ou a ação litúrgica deve cessar, a não ser que obste uma causa grave;


2.º exerce invalidamente os atos de governo, que, em conformidade com o § 1, n.º 3, são ilícitos;


3.º está-lhe vedado usufruir dos privilégios antes concedidos;


4.º não pode obter validamente qualquer dignidade, ofício ou outro cargo na Igreja;


5.º não faz seus os frutos da dignidade, do ofício ou de qualquer outro cargo, ou da pensão que porventura tenha na Igreja.” (CDC/1983, grifo nosso)


NOTA: O seu equivalente no Código de Direito Canônico de 1917 é o cânon 2264: “Os atos de jurisdição, tanto de fôro interno como de fôro externo, realizados por um excomungado, são ilícitos, e se houve uma sentença declaratória ou condenatória, são também inválidos, salvo o que se prescreve no canon 2261, § 3; antes da sentença são válidos, e ainda lícitos, se lhes solicitaram os fiéis ao teor do mencionado canon 2261, § 2.” (CDC/1917, cân. 2264, revogado; cfr. Paulo IV, Bula “Cum ex apostolatus officio”, 15 fev. 1559, § 5: SANTANA, R. As 15 Fontes da Bula Cum ex Apostolatus no Código de Direito Canônico de 1917. 20 mar. 2013. Disponível em: <http://doctorisangelici.blogspot.com/2013/03/as-15-fontes-da-bula-cum-ex-apostolatus.html>. Acesso em: 30 abr. 2019).

O § 1 se refere aos excomungados de modo geral, incluindo obviamente os excomungados latae sententiae, isto é, aqueles que, apesar de terem incorrido numa excomunhão automática por heresia, por exemplo, e inclusive se manterem na heresia, não realizando qualquer retratação ou retificação pública, em se tratando de hereges públicos e notórios, contudo não receberam qualquer sentença ou declaração de excomunhão e continuam exercendo seus ministérios e ofícios como se nada de grave houvessem cometido.

Tais hereges/excomungados latae sententiae celebram Missas, sacramentos e recebem sacramentos validamente, porém ilicitamente, isto é, ilegalmente por força de proibição da referida norma eclesiástica. Os atos de governo e ofícios são também exercidos validamente, embora ilícitos [ilegais]. Mas, atente-se: obviamente, os atos de governo e o próprio ministério petrino, se for o caso de um Papa herege, por exemplo, são válidos relativamente, isto é, enquanto não favoreçam à heresia, enquanto não neguem ou ponham em dúvida verdades que se devem crer com fé divina e católica (cân. 751); em outras palavras, enquanto não ponham em risco a fé dos fiéis.

Portanto, segundo o cânon 1331, § 1, nº 3, os leigos, os Padres, os Bispos, e também os Papas [todos os membros da Igreja] que tenham incorrido em excomunhão latae sententia na forma do cân. 1364, § 1 estão proibidos de “desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo” na Igreja, e quem os exerce, o faz ilegalmente, de maneira ilícita e moralmente inaceitável. Se for um Papa, exerce o ministério petrino de “confirmar os irmãos na fé” (cfr. Lc 22, 32) de maneira ilegal. Obviamente, isso não quer dizer que, ao exercerem atos de governo, ministérios, ofícios etc, sempre e necessariamente os exerçam invalidamente, ainda que ilícita ou ilegalmente. Por exemplo, as Missas e os sacramentos celebrados pelos hereges [logo, excomungados] são geralmente válidos - se celebrados com a intenção de fazer o que a Igreja faz, entre outros quesitos -, mas são celebrados de forma ilícita. Analogia se pode fazer no caso dos atos de governo e de ofício: a princípio são sempre válidos, porém ilícitos e ilegais, enquanto o herege/excomungado não se corrige. Não significa que tais atos são sempre válidos; são relativamente válidos. Deve-se levar em consideração a conexão e a intensidade com que tais atos de governo, ofício e ministérios se relacionam com o motivo que suscitou a excomunhão automática e a consequente proibição canônica. Por exemplo, no caso de um herege, o motivo da excomunhão e da consequente proibição de “exercer quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou atos de governo” (conforme cân. 1331, § 1, nº 3) é a heresia [negação ou dúvida pertinazes de verdades de fé]. Portanto, em matéria de fé, tendo em vista a excomunhão [a separação] do herege público e notório em relação à Igreja e à fé desta mesma Igreja, os atos de governo poderão ser inválidos, além de ilícitos, e assim, não poderão de forma alguma obrigar quem quer que seja. Ninguém na Igreja está, e nunca poderá estar, submetido ou em comunhão de fé com um herege público e notório, justamente porque o herege está fora da Igreja.

Portanto, no que se refere à censura do cânon 1331, § 1, nº 3, do atual Código de Direito Canônico (1983), a norma concorda com as prescrições essenciais do anterior Código de 1917 (revogado) e também com a Bula “Cum ex apostolatus officio” do Papa Paulo IV, evidenciando uma mens legis estável e explicitando um princípio teológico perpétuo e definitivo que estaria sendo traduzido na linguagem normativa eclesiástica nas normas acima mencionadas. O revogado cânon 2264 do CDC de 1917 remontou ao § 5 da Bula de Paulo IV:

“Considerando... que Bispos, Arcebispos, Patriarcas, Primazes, ou de qualquer outra dignidade eclesiástica superior... que devem ensinar aos demais e servir-lhes de bom exemplo, a fim de que perseverem na Fé Católica, com sua prevaricação pecam mais gravemente que os outros, pois que não só se perdem eles, senão que também arrastam consigo para a perdição os povos que lhes foram confiados; pela mesma deliberação e assentimento dos Cardeais, com esta Nossa Constituição, válida perpetuamente, contra tão grande crime

que não pode haver outro maior nem mais pernicioso na Igreja de Deus

na plenitude de Nossa autoridade Apostólica, sancionamos, estabelecemos, decretamos e definimos que pelas sentenças, censuras e castigos mencionados (que permanecem em seu vigor e eficácia e que produzem seu efeito), todos e cada um dos Bispos, Arcebispos, Patriarcas, Primazes, ou de qualquer outra dignidade eclesiástica superior; sejam Cardeais, Legados, condes, barões, marqueses, duques, reis, imperadores, que até agora (tal como se declara precedentemente) tiverem sido surpreendidos, ou houverem confessado, ou estejam convictos de se terem desviado (da Fé católica), ou de haver caído em heresia, ou de haver incorrido em cisma, ou de ter suscitado ou cometido; ou também os que no futuro se apartarem da Fé católica, ou caírem em heresia, ou incorrerem em cisma, ou os provocarem, ou os cometerem, ou os que forem surpreendidos ou confessarem ou admitirem haver se desviado da Fé Católica, ou haver caído em heresia, ou haver incorrido em cisma, ou tê-los provocado ou cometido, dado que nisto resultam muito mais culpáveis que os demais, fora das sentenças, censuras e castigos, enumerados, (que permanecem em seu vigor e eficácia e que produzem seus efeitos), todos e cada um dos Bispos, Arcebispos, Patriarcas, Primazes, ou de qualquer outra dignidade eclesiástica superior; sejam Cardeais, Legados, condes, barões, marqueses, duques, reis, imperadores

caíram privados também por essa mesma causa, sem necessidade de nenhuma instrução de direito ou de fato, de suas hierarquias, e de suas igrejas catedrais, inclusive metropolitanas, patriarcais e primazes; do título de Cardeal, e da dignidade de qualquer classe de Legado, e ademais de toda voz ativa e passiva, de toda autoridade, dos mosteiros, benefícios e funções eclesiásticas, com qualquer Ordem que for que tenham obtido por qualquer concessão e dispensação Apostólica, seja como titulares, ou como encarregados ou administradores, e nas quais, seja diretamente ou de alguma outra maneira houverem tido algum direito, ou os houverem adquirido de qualquer outro modo; caem assim mesmo privados de qualquer beneficio, rendido ou produzido, reservados ou assinados para eles. [...]

E assim serão tidos por todos, de qualquer dignidade, grau, ordem, ou condição que seja, e incluso, arcebispo, patriarca, primado, cardeal, ou de qualquer autoridade temporal, conde, barão, marquês, duque, rei o imperador, ou de qualquer outra hierarquia, e assim serão tratados e estimados, e ademais evitados como relapsos e exonerados, de tal modo que haverão de estar excluídos de todo consolo humano.” (Paulo IV, Bula “Cum ex apostolatus officio”, § 3, grifo nosso)

Incorrem em excomunhão ipso facto todos os que conscientemente ousam acolher, defender ou favorecer aos desviados ou lhes dêem crédito, ou divulguem suas doutrinas; sejam considerados infames, e não sejam admitidos a funções públicas ou privadas, nem nos Conselhos ou Sínodos, nem nos Concílios Gerais ou Provinciais, nem ao Conclave de Cardeais, ou em qualquer reunião de fiéis ou em qualquer outra eleição... e ninguém estará ademais obrigado a responder-lhes acerca de nenhum assunto... Ademais os clérigos serão privados também pela mesma razão, de todas e cada uma de suas igrejas, inclusive catedrais, metropolitanas, patriarcais e primazes; de suas dignidades, mosteiros, benefícios e ofícios eclesiásticos inclusive como já se disse, qualquer que seja o grau e o modo de sua obtenção.” (Paulo IV, Bula “Cum ex apostolatus officio”, § 5, grifo nosso)

Fonte: VERITATIS SPLENDOR. Disponível em: <https://www.veritatis.com.br/cum-ex-apostolatus-officio-paulo-iv-15-02-1554/>. Acesso em: 30 abr. 2019; cfr. PALE-IDEAS – TRADIÇÃO CATÓLICA. Disponível em: <https://farfalline.blogspot.com/2016/02/papa-paulo-iv-bula.html>. Acesso em: 30 abr. 2019).

Independentemente de aplicarem ou não as determinações da Bula de Paulo IV, o que mais interessa é seu peso e sua relevância teológico-moral, que imprimiu caráter definitivo à orientação segundo a qual os hereges incorrem em privação automática do direito de exercerem seus ministérios, ofícios, cargos eclesiásticos ou atos de governo, tal como reza a atual norma do cânon 1331, § 1, nº 3 - induzindo à interpretação de que, embora em certos casos extremos e raros a censura possa ser levantada ou relaxada, contudo a priori os hereges necessariamente estão automaticamente privados de exercer os ministérios e atos de governo; corroborando, assim, um caráter mais incisivo da referida norma do Código de Direito Canônico. Outro aspecto relevante é que a Bula de Paulo IV excomunga automaticamente todos os que em consciência – entenderíamos sem ignorância invencível ou culpável, sem negligência, ou tendo plena capacidade de perceber a gravidade do mal e do erro – acolhem, obedecem, favorecem, defendem a pessoa do herege e suas doutrinas heréticas. São também excomungados, o que é muito lógico, visto que seguem o herege e sua heresia. Se são clérigos, de qualquer nível hierárquico, são privados automaticamente do direito de exercerem seus cargos, ministérios e ofícios eclesiásticos, tal como já se definira no § 3 da referida Bula papal. Repetindo: a Bula diz o que deve fazer ou não deve fazer, e o obriga de forma definitiva e perpétua – estando seu conteúdo plenamente alinhado ao costume e prática tradicional da Igreja Católica. Agora, se na prática, vai-se respeitar a determinação da Bula, então esta é outra questão. A Bula, inclusive, sentencia com excomunhão automática [ipso facto] todo aquele que acolhe/aceita o herege (desviado) enquanto este permanecer na heresia.

O § 2 do cânon 1331 refere-se exclusivamente aos excomungados cuja excomunhão tenha sido declarada para o caso concreto, e geralmente precedida de procedimento eclesiástico próprio, em que o excomungado fora réu, antes de ser sentenciado com a excomunhão. Também se aplica aos casos em que o excomungado incorrera em excomunhão latae sententiae [automática e sem trâmite de processo eclesiástico], mas que fora também declarada por uma autoridade eclesiástica, por exemplo a Santa Sé. O excomungado alcançado pelo § 2 do cân. 1331 é o excomungado ferendae sententiae.

Cân. 1314 - A pena geralmente é ferendae sententiae, de modo que não atinge o réu, a não ser depois de lhe ter sido aplicada; é porém latae sententiae, de modo que nela se incorra pelo mesmo fato de se cometer o delito, se a lei ou o preceito expressamente assim o estatuir.” (CDC/1983, grifo nosso)

Enquanto o § 1 se aplica a todos os excomungados – o que inclui os atingidos pela pena latae sententiae – o § 2 se aplica exclusivamente aos excomungados ferendae sententiae, isto é, aqueles cuja excomunhão fora declarada. Mesmo se for uma excomunhão latae sententiae [automática], necessita de sentença declaratória para que o excomungado se enquadre também nas prescrições do § 2. Neste caso, tendo o excomungado passado antes pela condição de réu, e acabou tendo sua excomunhão decretada, às penalidades elencadas no § 1 somam-se outras ainda mais rigorosas. Somente neste caso, os atos de governo, se desempenhados pelo condenado, são sempre e necessariamente inválidos, além de ilícitos:

“§ 2. Se a excomunhão tiver sido aplicada ou declarada, o réu: (...) 2.º exerce invalidamente os atos de governo, que, em conformidade com o § 1, n.º 3, são ilícitos;” (CDC/1983, cân. 1331, § 2, nº 2).

Da mesma forma que no caso do excomungado latae sententiae, as Missas e os sacramentos celebrados pelo excomungado ferendae sententiae são válidos, embora ilícitos, desde que atendidos os requisitos da validade sacramental. Porém, nesta forma de excomunhão, todos os atos de governo na Igreja são inválidos, além de ilícitos/ilegais. Também somente se atingido pela excomunhão ferendae sententiae, o réu incorre na remoção do ofício (conforme cân. 194, § 1, nº 2; § 2).

Agora, retornando à pergunta a que desejamos apresentar resposta, logicamente improvisada e não encerrada, bem como necessitada de tratamento mais aprofundado:

Um herege público, notório e pertinaz continua sendo Papa?

RESPOSTA PARA O MOMENTO: Se ele não possuía nenhuma declaração de excomunhão no momento de sua eleição papal, e se sua eleição fora válida, ele continua sendo Papa real, porém proibido de desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo” (CDC/1983, cân. 1331, § 1, nº 3), o que inclui proibido de exercer o ministério petrino de “confirmar os irmãos na fé” (cfr. Lc 22, 32).

Neste caso, embora possua o ministério petrino [sendo válida sua eleição], está canonicamente proibido de exercê-lo, a semelhança de um Papa aposentado [emérito], embora por motivos bastante distintos, ao menos enquanto perdurar o motivo que o levou à excomunhão latae sententiae e à consequente proibição canônica – motivo este que é a heresia, que provoca a separação do excomungado da fé e do corpo da Igreja Católica.

Não significa que todos os atos dele, inclusive os de governo, serão inválidos, mas serão ilegais. Como não existe nenhuma autoridade humana na terra para julgar um Papa legitimamente eleito, não será possível a nenhuma autoridade eclesiástica tramitar processo contra ele e muito menos emitir uma sentença de excomunhão contra Sua Santidade. Logo, não tem como um possível Papa herege ser excomungado ferendae sententiae e incorrer nas prescrições do § 2 do cân. 1331, mas é certo não estar isento da excomunhão latae sententiae, incorrendo nas proibições do § 1 do cân. 1331. Por isso, seus atos de governo não serão sempre inválidos nos termos do nº 2 do § 2 do cân. 1331, mas serão sempre ilícitos nos termos do nº 3 do § 1 do mesmo cânon. Obviamente, se seus atos de governo forem perigosos ou prejudiciais à Fé Católica, então serão inválidos e ilegais, não podendo obrigar.

Um Papa real não poderá ser removido do ofício nos termos do cân. 194, § 1, nº 2, porque não haverá nenhuma declaração válida de excomunhão contra ele, pelo fato de inexistir autoridade humana para julgá-lo. Contudo, por força da proibição dos hereges e excomungados (Código de Direito Canônico/1983, cân. 1364, § 1; cân. 1331, § 1) e que está em conformidade com a prática tradicional e constante da Igreja, haveria que se falar numa espécie de proibição do exercício do ministério petrino.

Além disso, frise-se que um herege processado, sentenciado e excomungado incorre em rigorosas proibições dos cânones 194, 1331, 1336 e 1364, bem explícitas no Código Canônico e, em épocas passadas, era até mesmo queimado vivo na fogueira. Bispos inúmeros também foram condenados desde os grandes concílios ecumênicos da antiguidade e removidos de suas sés episcopais. Agora, só porque uma pessoa é Papa, e por isso não pode ser julgado canonicamente pelos outros membros da Igreja – e justamente esta pessoa Papa é a que tem a maior responsabilidade em defender a Fé e a Doutrina da Igreja, confirmando todos os demais – ficará ilesa, intocável, no sentido de não ser atingido pelas proibições dos hereges e excomungados, tais como as elencadas no Código de Direito Canônico???

Então, por justiça, já se vê que não é por aí que se resolve a questão. Ninguém por ser autoridade eclesiástica, a mais alta e notável que seja, está isento de arcar com as consequências de seus atos, principalmente no que se refere à Fé, que é o ligame dos membros da Igreja.

Se a pessoa que se diz Papa - ou é por todos reconhecida como Papa - contudo é um herege público e notório, esta hipótese tem consequências teológicas:

“Que por ele rezou, o Senhor o declara quando diz, no momento da paixão: ‘Eu rezei por ti, Pedro, para que não desfaleça a tua fé. E tu, quando fores convertido, confirma os teus irmãos’ [Lc 22, 32], com isto claramente indicando que os seus sucessores jamais desviariam da fé católica, mas antes chamariam os outros e também confirmariam os duvidosos, destarte concedendo a ele o poder de confirmar os outros de modo a impor aos outros a necessidade de obedecer.” (Inocêncio III, Carta “Apostolicae Sedis primatus”, ao patriarca de Constantinopla, 12 nov. 1199: Dezinger-Hünermann, 775)

Segundo Inocêncio III, é confirmando os outros na Fé que o Papa pode impor a necessidade de obedecer. Porém, um Papa herético não tem a fé da Igreja, em decorrência de sua heresia, e por isso não tem como exercer o ministério petrino de “confirmar os irmãos na fé” (cfr. Lc 22, 32), e em consequência, também não poderia exigir ou impor a necessidade de obedecer. Repare que um Papa nesta situação de heresia está realmente impedido de exercer o ministério petrino e de cobrar obediência na Igreja, corroborando a proibição do cân. 1331, § 1, nº 3, e colocando-se numa espécie de “Papa aposentado” ou “impedido” ou “proibido de exercer o ministério petrino”...

Entendimento semelhante possui São Roberto Belarmino, para quem o Papa não pode ser obedecido quando tentasse, via de hipótese, destruir a Igreja:

“É lícito resistir ao Pontífice que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade” (De Romano Pontifice, Lib II, c. 29).

E a Congregação para a Doutrina da Fé destaca que o primado do Romano Pontífice tem seus limites definidos pela Revelação de Deus, condicionando a obediência à conformidade das intervenções pontifícias com a Revelação:

“O Romano Pontífice está como todos os fiéis submetido à Palavra de Deus, à fé católica e é garante da obediência da Igreja e, neste sentido, servus servorum. Ele não decide segundo o próprio arbítrio, mas dá voz à vontade do Senhor, que fala ao homem na Escritura vivida e interpretada pela Tradição; noutros termos, a episkopè do Primado tem os limites que procedem da lei divina e da inviolável constituição divina da Igreja, contida na Revelação.” (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre O Primado do sucessor de Pedro no mistério da Igreja, 31 de outubro de 1998, n. 7. Disponível em: < http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19981031_primato-successore-pietro_po.html>. Acesso em: 29 abr. 2019. Grifo nosso).

“... abstração feita disso, a qualificação de monarca absoluto também não se aplica ao Papa nos assuntos eclesiásticos, visto que ele está sob o direito divino e ligado às disposições estabelecidas por Cristo para a sua Igreja. Ele não pode modificar a constituição dada à Igreja por seu divino fundador do modo como um legislador temporal pode modificar a constituição do Estado. A constituição da Igreja é fundada, em todos os seus pontos essenciais, sobre uma disposição divina fora do alcance da arbitrariedade humana.” (Declaração comum dos Bispos da Alemanha, janeiro-fevereiro de 1875: Dezinger-Hünermann, 3114 endossada por Pio IX na Carta Apostólica “Mirabilis illa constantia”, aos Bispos da Alemanha, 04 mar. 1875: Dezinger-Hünermann, 3117 e na alocução aos Cardeais de 15 de março de 1875: “... ratificamos estas luminosas declarações e protestos dignos de sua coragem, de sua ordem e de seu espírito religioso, e as confirmamos com a plenitude de nossa autoridade apostólica”)

Mas então o que farão os fiéis na hipótese de um Papa ser herege público e notório?

RESPOSTA: O que manda a Doutrina Católica e a Lei Canônica da Igreja.

“A autoridade só será exercida legitimamente se procurar o bem comum do grupo em questão [no caso da Igreja, a conservação da Fé e a salvação das almas: Assim, os Padres do IV Concílio de Constantinopla, seguindo os passos dos antepassados, publicaram esta solene profissão da fé: “A salvação consiste antes de tudo em guardar a regra da fé verdadeira”] e se, para atingi-lo, empregar meios moralmente lícitos. Se acontecer de os dirigentes promulgarem leis injustas [por exemplo, heresias] ou tomarem medidas [atos de governo, de magistério, de ministério sacerdotal] contrárias à ordem moral [e à Lei Divina Revelada, no caso da Igreja], estas disposições não poderão obrigar as consciências. “Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder [“§ 1 O excomungado está proibido de: (...) 3º desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo.” (Código Canônico, cân. 1331)]” (Pacem in terris, 51)” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1903, paráfrase e entre [ ] inseridos por nós)

Mas, numa situação em que o Papa legitimamente eleito, por ser herege e excomungado latae sententiae, estaria fora da Igreja e proibido de desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo” (CDC/1983, cân. 1331, § 1, nº 3); esta situação colocaria a Igreja a nível universal em uma situação decadente e moribunda, pois há atos (criação de cardeais, criação de dioceses, administração da Sé Apostólica, pastoreio da Diocese de Roma, concessão de indulgências etc) que somente o Papa poderia executar, não poderia delegar determinados atos a sínodos, concílios ecumênicos e conferências episcopais, até mesmo porque isto violaria a constituição monárquica da Igreja, impediria a unidade de governo e inviabilizaria as prerrogativas do Papado como instituição dogmaticamente necessária. Então, a Igreja prevendo as grandes calamidades, os cataclismos, mortes e graves crises, em circunstâncias especiais, graves e extremas – e principalmente nas matérias e assuntos que não coloquem em risco a Fé de seus membros –, prevê algum relaxamento das proibições dos hereges e excomungados, o que também se aplica ao caso de um suposto Papa herege:

Cân. 1335 - Se a censura proibir celebrar sacramentos ou sacramentais ou exercer um ato de governo, a proibição suspende-se todas as vezes que for necessário para atender os fiéis que se encontrem em perigo de morte; se a censura latae sententiae não tiver sido declarada, a proibição suspende-se ainda, todas as vezes que o fiel pede o sacramento ou o sacramental ou um ato do governo; e é-lhe lícito pedi-lo por qualquer causa justa.” (CDC/1983)

Pretendemos voltar ao assunto em outra oportunidade e analisarmos a questão sob outros ângulos. Aqui pretendeu-se demonstrar que um Papa herege não pode ser seguido e que não se encontra no gozo de seu ministério petrino.

Santo Antônio de Pádua – RJ, 01 de maio de 2019.

Vitor José Faria de Oliveira